sábado, 15 de outubro de 2011

Fuja das nuvens, pequena Nancy

 É normal uma criança de sete anos demonstrar curiosidade sobre o mundo a sua volta, mas aquilo já era demais. Nancy passava o dia todo observando as nuvens, deitada na grama bem cuidada do jardim da casa de seus pais, enquanto sua irmã mais nova procurava captar algum sentido naquilo. O que prendia tanto a atenção de Nancy em pequenos pedaços difusos de vapor que nem tinham um lugar fixo? Para Lice, as coisas não tinham um sentido se não tivessem um lugar ao qual pertencessem. Ela pertencia ao coração de sua mãe, seus sapatos envernizados pertenciam à ela, e Nancy pertencia às nuvens. Ela só não sabia disso ainda. 
 Outra coisa estranha foi a "fase de perguntas", pela qual Nancy não passou. De fato, sempre fora uma criança anormalmente quieta, embora andasse pela casa com um sorriso leve de quem está em paz. Lice, por sua vez, metralhava seus pais com perguntas absurdas que os faziam rir. Nancy ria baixinho e voltava sua atenção para a janela, de onde observava o céu. 
 Quando pequena, Nancy se perguntava como seria tocar as nuvens, sentir o vapor úmido acariciando sua pele alva, tentar agarrá-la. Como seria pular de uma nuvem para outra, olhando para baixo enquanto tentava manter o equilíbrio com os bracinhos esticados (como uma pequena bailarina). À medida que crescia, suas divagações se tornavam mais frequentes e complexas. Ela se perguntava o porquê das nuvens estarem assim, tão distantes do chão, tão distantes do mundo em que ela vivia, tão distantes dela. Todos têm um objetivo na vida, algo que ilumina os dias mais difíceis e que oferece segurança para seguir em frente. O objetivo de Lice era ser a bailarina principal. O de Nancy, tocar as nuvens.
 Lice fazia ballet desde os 6 anos. Os pais das duas perguntaram à Nancy se ela gostaria de cursar algo para acompanhar a irmã, mas ela não quis. Então, enquanto Lice ensaiava, Nancy esperava na biblioteca. Lice tinha aulas de ballet três vezes por semana, e cada aula durava em média três horas, o que era tempo suficiente para que Nancy folheasse a maioria dos livros de lá. As prateleiras  tinham manchas e os livros apresentavam um tom amarelado e poeirento nas páginas. Nancy gostava. Passava a mão sobre as letras como se pudesse sentí-las, como se assim fosse absorver a história ali contida, criptografada por nada mais que.. letras. Tinta. Uma caneta e uma noite de insônia, acompanhada por café. Um escritor que não tinha mais o que fazer.
 Certo dia, Lice foi até a biblioteca (equilibrando-se na sapatilha de ponta) avisar Nancy de uma festinha na casa de uma colega. "Só algumas horas, depois ligo para a mamãe me buscar, ok?", disse ela. Nancy concordou, e decidiu permanecer na biblioteca por mais algum tempo antes de voltar para casa. 
 Ela estava caminhando por entre as prateleiras manchadas (que exalavam um cheiro fantástico, por sinal) quando notou um livrinho fino dentro de uma caixa. Apanhou-o e limpou a poeira da capa com as costas da mão para que pudesse ler o título, escrito em letras douradas: "O fio mágico". Sentou-se na mesa mais próxima e começou a ler. 
 O livrinho era infantil e, pelo que Nancy entendeu, vinha da França. Era sobre um garoto que vivia querendo crescer, crescer, crescer. E ele amava uma garotinha. Certo dia, esse garoto encontrou uma senhora no caminho para a escola, e ela ofereceu-lhe um novelo de lã que, segundo ela, cada vez que ele puxasse (apenas um pouquinho, por favor) a lã, o dia passaria mais rápido.
 "Mas seja cuidadoso", ela disse, e Nancy fez questão de murmurar as palavras enquanto as lia. "Uma vez que a lã seja puxada, ela desintegra e não há mais volta. Quanto mais você puxar, mais rápido o tempo passará."
 Claro que o garoto não deu ouvidos. Puxou tudo que pôde, e viu-se velho e doente. Viu a garota que amava morrer ao seu lado, viu os filhos ficarem doentes, viu a cidade ser destruída pela guerra. Mas, como todos têm outra chance, ele encontrou a senhora novamente, e pediu para voltar no tempo e nunca ter aceitado o novelo mágico. Ela concedeu, e ele acordou como se nada tivesse acontecido.
 Nancy fechou o livro e saiu da biblioteca, quase flutuando. Seus pensamentos estavam confusos. Enquanto caminhava em direção à casa de seus pais, olhou para o céu. "Sem nuvens", pensou. E então decidiu: daria um jeito de tocar as nuvens.
 Quando o dia estava amanhecendo, Nancy se encontrava na beira de um laguinho, com uma mochila desbotada pendendo em seu ombro direito e sapatos encharcados pela chuva. Dentro da mochila apenas o que precisava: um caderno, lápis, calmantes e um laço que pertencia à Lice. Nancy pegou primeiro o caderno e os lápis. 
 Olhou para o céu e desenhou as nuvens, depois a si própria, depois balões. Balões brancos. A cada erro, tomava uma pílula do calmante, com a fita de Lice amarrada em seu pescoço.
 Ela errou demais. Começou a sentir-se tonta e deitou na grama, ainda com os pés dentro do lago. Olhou para as nuvens e elas começaram a dançar. Nancy gostaria de dançar junto, mas não podia. Estava muito longe. 
 A medida que sua visão se turvava, as nuvens se aproximavam. Nancy fechou os olhos e pôde sentir a brisa suave roçar em seu rosto, acompanhada de uma leve umidade proveniente das nuvens que estavam cada vez mais próximas. Nancy não podia distingui-las, mas sentia. Seu coração sentia. As nuvens a completavam. 
 Então as nuvens se foram. E Nancy também. Cumprira seu objetivo. Estava, enfim, livre para dançar com as nuvens e fazer o que mais quisesse.

Um comentário:

  1. "Sister Bluebird flying high above,
    Shine your wings forward to the sun.
    Hide the myst'ries of life on your way.
    Though you've seen them, please don't say a word.
    What you don't know, I have never heard."

    (Não preciso estabeler correlações entre os versos e o texto, né?)

    Bonito. Bastante. Tua escrita tá melhorando. Mais detalhes, mais imagens, mais figuras.

    Se me perguntassem sobre o que é, não falaria da disparidade entre as irmãs, do problema da passagem do tempo, da sensibilidade extramundada da Nancy — diria que é muito mais sobre esperança.

    Lembro de uma repórter da Zero Hora que asseverava que os sonhos não são cousas que pegamos da mesma maneira que compramos uma caixa de leite num supermercado, mas que estão mais pra um touro indomável que precisa ser pego à unha. E isso pressupõe, com o perdão do clichê, esperança e perseverança. Sem esperança ou perseverança, só sobra autopiedade, chapinhando na apatia. E Nancy não foi autocaridosa — mas esperançosa e persevarante. Teu otimismo fica latente.

    Ademais, Nancy podia até não saber pra onde as nuvens iam, como uma Catarina aí, mas ao menos ela foi. Como eu disse, bonito. Bastante.

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